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A obsessão com a Ucrânia

A invasão da Rússia à Ucrânia pode ainda parecer um assunto distante. Mas até o mais desinteressado dos europeus vai acabar por sentir as consequências devastadoras deste conflito.

Foto por geralt via Pixabay

Os jornais “não falam de outra coisa” é uma queixa comum por estes dias. E entende-se porquê. Depois de dois anos intensos de pandemia, esta não é a “vitória” que nos tinha sido prometida. Passámos de um estado de calamidade a uma verdadeira hecatombe. Estará a imprensa mundial obcecada com a Ucrânia?

Estamos cansados de viver num permanente estado de “fim do mundo”. Alguns estarão esquecidos, mas pouco antes da Covid-19, ao longo de 2019, milhões de portugueses já tinham sido ‘forçados’ a açambarcar combustível. Uma corrida às bombas desencadeada por duas controversas greves dos motoristas que transportam matérias perigosas.

Com o choque da pandemia em março de 2020, passámos a comprar em barda máscaras, álcool-gel, conservas e papel higiénico. E agora, que parecia termos finalmente aceitado a convivência com o coronavírus, aqui estamos, de caras com mais uma ameaça às nossas vidas, ao bem-estar e à economia global.

Gostava de poder ser mais otimista em relação ao que se passa no leste da Europa. Infelizmente, a realidade não me deixa. Esta invasão ordenada por Vladimir Putin à Ucrânia é bem capaz de ser a notícia da década, o que não é de somenos importância dada a crise pandémica histórica que ainda estamos a tentar superar.

Engana-se quem pensa que esta é uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia. A atitude do responsável máximo desta desgraça é a de alguém em fim de linha. Só assim se explica que Putin, líder russo de legitimidade duvidosa, ouse acenar a bandeira do nuclear num mundo quase todo unido contra si.

Se a Rússia é uma das maiores potências nucleares do mundo (na verdade, é mesmo a maior), a aliança da NATO, da qual Portugal faz parte, conta com três: EUA, Reino Unido e França, já para não falar da mais alargada lista de países europeus com armas nucleares armazenadas no seu território, da qual farão parte Bélgica, Alemanha, Itália e Países Baixos.

Resumindo, no dia em que Putin premir o botão vermelho, desencadeará um gigantesco desastre planetário. Mas é difícil de imaginar outro cenário que não o da total aniquilação da Rússia. Putin deve saber isso. Infelizmente, sendo um pariah, é o que fará se nada mais tiver a perder.

O conflito nuclear é uma hipótese real que custa muito a engolir. É difícil de acreditar que outro ser humano tenha a menor ambição de pôr fim à própria Humanidade, mas tudo é possível porque Putin é um louco. Um aviso à navegação, principalmente aos eleitores norte-americanos: isto é o que pode acontecer quando se põem nas mãos de um louco os códigos do arsenal nuclear.

Por esta altura, após mais de uma semana de conflito, o desfecho é imprevisível e todos os cenários que se perspetivam são deprimentes. Milhares vão perecer na Ucrânia dos dois lados da barricada e mais de um milhão de pessoas viram-se obrigadas a fugir. Até para o mais desinteressado europeu as consequências serão fortes e pesadas. A partir de agora, viver será mais difícil.

As próximas semanas vão continuar marcadas por aumentos históricos de preços. Os combustíveis são o caso mais evidente. À hora a que escrevo estas linhas, existem filas de trânsito nos postos de combustível — é a véspera do maior aumento de sempre dos preços do litro de gasolina e de gasóleo.

Assistiremos a aumentos notórios na fatura da eletricidade e de todos os tipos de gás. Enquanto o gás natural negoceia em máximos históricos na Europa, por causa da nossa dependência do gás russo, o metro cúbico de GPL (gás de petróleo liquefeito) canalizado fornecido pela Galp acaba de disparar 11%, passando de 4,673 euros em janeiro para uns surpreendentes 5,184 euros em março, no escalão de consumo mais baixo (a tarifa mais cara)… sem contar com o IVA.

No mercado ibérico, o MWh (megawatt-hora) de eletricidade deve atingir um preço médio recorde de 442,54 euros esta segunda-feira. Custa acreditar que este brutal aumento de custos não será passado para o consumidor pelas empresas que comercializam energia elétrica no mercado liberalizado.

Independentemente do que resultar desta guerra, a Europa vai pôr em marcha um longo e duro desacoplamento face aos fornecimentos de gás natural com origem na Rússia, que se deverá materializar na construção de terminais para o GNL (gás natural liquefeito) norte-americano, transporte e infraestruturas de regaseificação. Já se fala na possibilidade de termos de racionar gás natural nos próximos dois invernos. Alguém falou em pobreza energética?

A escalada dos preços da energia terá reflexo imediato nos preços da grande maioria dos produtos, dos cereais que comemos ao pequeno-almoço à garrafa de vinho que levamos para um jantar com amigos, da carne que pedimos ao balcão do talho aos produtos hortícolas. É como derramar gasolina (quase literalmente) em cima do fogo que já é a inflação.

Por sua vez, essa inflação será como um ácido vertido sobre os nossos salários e poupanças. Para os mais distraídos, o Índice de Preços no Consumidor (IPC) em Portugal acelerou de 3,34% em janeiro para 4,2% em fevereiro, segundo o INE. Na Zona Euro está nos 5,8%, outro recorde, segundo o Eurostat. Números que refletem a realidade antes do início da guerra.

Para domar este ‘monstro’, os bancos centrais terão de subir juros. É o que acontecerá dentro de dias nos EUA, com a subida das taxas pela Fed dentro de pouco mais de uma semana. E não está totalmente afastada uma decisão semelhante por parte do BCE. Só essa expectativa já está a puxar pelas prestações mensais da casa a milhares de famílias portuguesas. Se já era difícil um jovens comprar a primeira casa…

Depois de uma pandemia histórica, vamos continuar a viver tempos extraordinários. Só que, enquanto antes combatíamos um vírus, agora é o homem que se combate a si próprio. A guerra na Ucrânia pode parecer distante ou até uma obsessão. Mas distante ou obsessão é coisa que não é.

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