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Vamos falar de cócegas

Brincadeira infantil ou uma espécie de tortura?

Vamos falar de cócegas
Foto por Piqsels.com

“Quem não gosta de cócegas?”, diz uma girafa a um pinguim deprimido. Cena seguinte: a girafa, chamada Rafa, atira-se ao pinguim, que ri às gargalhadas. “Adoro cócegas!”, responde a ave, ligeiramente exasperada. Os dois acabam estatelados no chão.

Animais que falam? Uma girafa chamada Rafa? Não, (ainda) não ensandeci. A situação passa-se num desenho animado da BabyTV, um canal de televisão por cabo destinado a crianças de berço. E “quem não gosta de cócegas” é, obviamente, uma pergunta retórica — afinal, quem é que não gosta delas?

Mas não devia de ser uma pergunta retórica.

Estou convencido de que as vítimas de cócegas raramente gostam de cócegas. E não é difícil de perceber porquê. A bom rigor, são quase uma forma de tortura. Porém, socialmente aceite e praticada aos filhos pelos pais.

Se o exemplo anterior fosse real, poderia ser muito diferente. Por exemplo: a girafa atirar-se-ia ao pinguim num ataque de cócegas; o pinguim riria alegremente, mas apenas por breves instantes; depois, sentiria falta de ar e até dor; estes sentimentos seriam mascarados pelas gargalhadas do pinguim; a ave gritaria “pára”, mas seria ignorada.

“Brincadeiras” como esta são uma prática tão instituída nas famílias que muitos de nós passámos por ela, tanto do lado da vítima como do lado do “atacante”. Faça um esforço e tente recordar-se dos tempos da sua infância: o que sentia quando lhe faziam cócegas sem parar? Alegria? Ou desespero?

Para mim, é um assunto sério que deve ser debatido. Mas não tome como válida só a minha palavra. A primeira vez que vi o assunto posto nestes termos foi neste artigo publicado no The New York Times, da autoria de Jenny Marder, jornalista freelancer e redatora de ciência da NASA:

«Quando era uma criança pequena, o pai de Ashley Austrew costumava pegar nela e fazer-lhe tantas cócegas que ela se sentia momentaneamente paralisada. Ele pensava que ela se estava a divertir — afinal, as cócegas faziam-na rir — mas ela detestava. Em mais do que uma ocasião, escapou do sofá e bateu com a cabeça na mesa de centro.»

Jenny Marder
The New York Times

Soa-lhe familiar?

De acordo com o artigo de Marder, os mais vulgares ataques de cócegas podem sobrecarregar o sistema nervoso das crianças, fazendo-as sentirem-se descontroladas e até desesperadas. Podem ainda espoletar cataplexia, o nome técnico para a perda do controlo dos músculos do corpo — uma espécie de paralisia temporária.

“As cócegas podem tornar-se numa forma de bulling ou até abuso”, escreve a articulista. E arrisco dizer que, algumas vezes, nem são ações praticadas pelos pais da criança: pode ser aquela tia ou aquele primo que só aparecem lá em casa uma vez por ano; ou de crianças a outras crianças (com a agravante de poderem ser ainda mais implacáveis no momento de parar).

Marder continua:

«“Eu não gostava [das cócegas], mas também havia uma certa pressão para gostar, por isso eu ficava numa posição estranha”, disse Austrew […]. “Era como se houvesse um contrato social tabu [que determina] que os adultos devem fazer cócegas às crianças para as fazer rir, e as crianças devem gostar de receber cócegas.”»

Jenny Marder
The New York Times

Contudo, existe um outro argumento de peso contra as cócegas. Numa altura em que devemos ensinar às crianças que não é correto tocar nos outros (ou deixar ser-se tocado) de formas desconfortáveis (e sem o consentimento), a mensagem transmitida nos ataques de cócegas parece ser a oposta.

Veja também: Jornalistas não se medem aos palmos

Face a isto, coloca-se a questão: devemos abolir as cócegas?

Na peça do The New York Times, também fica claro que as cócegas marcam pontos se forem acompanhadas de uma dose de moderação. Podem reforçar os laços parentais. E claro que também existem pessoas que gostam de cócegas. Algumas crianças, inclusivamente, pedem aos pais para que lhes façam cócegas.

Não tenho filhos, pelo que não tenho essa experiência. Quiçá, a solução passe por uma maior atenção por parte dos defensores das cócegas. E, acima de tudo, há-que garantir que um “pára” é sempre interpretado como uma ordem imediata para se parar.

Pessoalmente, não gosto de cócegas. Tenho memórias semelhantes às de Austrew — alguém a fazer-me cócegas até me deixar paralisado e com falta de ar.

Admito que, para muita gente, debater as cócegas pareça mais uma tentativa de “justiça social”, sob a forma de “microagressão” sem sentido ou relevância. Mas uma sociedade saudável, que não esteja estagnada, deve evoluir sempre que pode.

Hoje, nos países ricos, a generalidade das mulheres são livres de escolher com quem querem casar, ou nem casar de todo. E um potencial noivo não tem de presentear a família da mulher com “cinco vacas, cinco cabras e algum dinheiro” em numerário, como ainda acontece no Uganda (socorro-me aqui da última edição da The Economist). Mas já foi mais ou menos assim.

Chama-se progresso. E o progresso só é alcançado quando ousamos discutir o sentido da ortodoxia.

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