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Jornalistas não se medem aos palmos

Para se definir o que é um “grande jornalista”, é preciso responder primeiro: eles existem?

À procura de novas perspetivas.

De que é feito um grande jornalista?

É uma pergunta que tenho feito a mim mesmo com frequência.

Para muita gente, grandes jornalistas são aqueles que, através da televisão, nos entram pela casa adentro. São as “Claras de Sousa” e os “José Alberto Carvalhos” desta vida.

Para outros, são quem arrisca a vida por uma notícia. Profissionais como a Clarissa Ward, da CNN, que nos dão murros no estômago com reportagens como esta:

Tradução: “@ClarissaWard, da CNN, reporta os obstáculos que americanos e afegãos têm enfrentado ao tentarem chegar ao aeroporto de Cabul, enquanto os talibãs tentam bloquear o acesso com disparos e violência (…).”

Tenho refletido sobre o tema nas últimas semanas. O gatilho foi esta investigação publicada no Setenta e Quatro, do jornalista Ricardo Cabral Fernandes, que esteve infiltrado na filial dos “Proud Boys” em Portugal, até conseguir fazer o “juramento”.

O trabalho é capaz de tirar o fôlego a qualquer um:

«No encontro em que o jornalista do Setenta e Quatro fez o juramento, o vice-presidente desafiou-o para um duelo de chapadas (…). “Zé, levanta-te. Duelo de chapadas. Anda”, disse o vice-presidente. “Estás a falar a sério?”, respondeu o jornalista. “Sim, anda”, reforçou, puxando de seguida uma cadeira e dizendo para se pôr a mão nela, separando os duelistas. (…) O vice-presidente esbofeteou então o repórter na cara e depois foi a sua vez. João Filipe ficou marcado no rosto e a cuspir sangue da boca, sendo acudido de imediato pela namorada.»

“Licença para odiar: Como nasce uma filial dos Proud Boys em Portugal”
Por Ricardo Cabral Fernandes a 13 de julho de 2021
Setenta e Quatro

Não conheço pessoalmente o Ricardo, nem conheço o seu passado de jornalista. Calculo que o facto de ser diretor deste novo jornal tenha “pesado” na decisão de se infiltrar numa célula da extrema-direita violenta. A melhor forma de se lançar um jornal é publicando uma grande cacha logo à nascença.

Há uma certa heroicidade em correr grandes riscos, seja qual for o motivo. Mesmo assim, não é qualquer jornalista que aceitaria enfrentar perigo a troco de informação. Ler a investigação do Setenta e Quatro deixou-me com um misto de inveja boa e de estupefação: aquela informação tem, obviamente, relevância jornalística; tenho é dúvidas se esse valor compensa o perigo que se correu para a obter.

Dito isto, tenho razões para desconfiar que o Ricardo é, de facto, um bom jornalista. Mas será um grande jornalista?

E será melhor jornalista do que eu?

Não me julguem. Quem não se compara com os outros que atire a primeira pedra. É da natureza humana. E se a vida sempre encontra formas de me lembrar que não sou melhor do que ninguém, tento esforçar-me todos os dias para ser a melhor versão de mim. É como um ciclo vicioso. Nunca acaba, desde que haja ambição.

O mais perto que estive de morrer a reportar notícias foi nos incêndios de 2017. Ainda tenho bem presentes na memória imagens de grandes labaredas a romperem a escuridão em plena madrugada. Recordo-me, em particular, de duas situações de maior risco: numa, andei perdido numa zona industrial algures, praticamente rodeada pelo fogo. A outra está documentada aqui:

Se ponderava o risco naquela altura? Claro que não. Era jovem e inocente e não tinha nada a perder.

Em retrospetiva, aprendi muito. Mas esses trabalhos não fizeram de mim um melhor jornalista, quanto mais um grande jornalista. As imagens foram vistas por milhares de pessoas na altura, só que por mero sensacionalismo. O fogo atrai o homem desde os tempos do Homo habilis

O meu trabalho é mais tranquilo hoje em dia. Como efeito da pandemia, até as entrevistas mais importantes passaram para o Zoom.

Na metade do tempo que passo a reportar, muita da informação chega-me por telefone, mensagem e email, ou descubro-a “enterrada” nos confins de um website qualquer. A outra metade, passo-a editar o jornal. É fruta da época: “Jornalismo de secretária”, mas que não deixa de ser Jornalismo.

Feita esta reflexão, serei menor jornalista do que a Clara, o José, a Clarissa ou o Ricardo? E serei maior jornalista do que a Joana, que trabalha na imprensa local, ou a Maria, que escreve sobre bola?

Não escolhi o título deste artigo por acaso. Estou cada vez mais convencido de que os verdadeiros jornalistas não se medem aos palmos. Se assim for, como suspeito, as perguntas acima não fazem qualquer sentido. Todos cumprem diferentes papéis. Todos servem diferentes “audiências”, numa função que — acredito — ainda é vista como útil por uma maioria.

Para o jornalismo que precisamos, aquele que se quer o “quarto pilar da Democracia”, ganhamos mais em contar com todos — da Clara à Joana e do José à Maria. Por isso, como linha vermelha, traço apenas o código deontológico da profissão.

Queremos todos. Todos. Desde que venham por bem.

Leia também: “Estamos a ser assaltados”, uma crítica ao livro “A Era do Capitalismo de Vigilância” de Shoshana Zuboff.

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